Estudos, rascunhos, anotações (3)

30 d+00:00 Março d+00:00 2010

COPACABANA

28 d+00:00 Março d+00:00 2010

Nasci e fui criado no bairro. Hoje, morador do Catete, mantenho ainda o atelier em Copacabana, freqüento suas praias, bebo em seus bares, misturo-me à babel de tipos que lá habitam, trampam, trabalham, namoram; gente das mais diversas procedências, credos e matizes, miscigenando vícios sagrados e podres virtudes.
Um universo humano dessa riqueza e complexidade atraiu, como não poderia deixar de ser, os olhares de um sem número de escritores, artistas, cineastas. O material é farto e diversificado como sua fonte de origem.
Inicialmente pensei em várias postagens em seqüência como no bestiário. Mas repensei o formato e, aproveitando-me da agilidade oferecida pelo blog, optei por uma postagem única que irei reeditando e engrossando conforme novos textos forem surgindo.
Ando garimpando no caos de minhas estantes contos e poemas que abordem o tema; achei alguns, continuo na cata de outros. Dei uma tarrafada na net e outros peixes vieram na rede. Aceito lembranças e sugestões.
Para as ilustrações criei um painel misturando a zorra toda e inseri –via photoshop – algumas imagens da série “Pedra do Cantagalo” , já postada no blog (veja aqui)
Fragmentos de textos e imagens formam um mosaico dessa terra de todos e de ninguém, feita de maresia e gás carbônico, sal, areia, asfalto e cimento.
Seu dinamismo e amplitude, ai de nós, estarão sempre muito além de nossa capacidade de apreendê-la em sua demasiada humanidade, exposta entre mares e montanhas, dias sombrios, noites iluminadas.

FIM DE TARDE / Celso Japiassu

Talvez tenham escolhido um bar tão movimentado como o Real Chopp, em plena Barata Ribeiro, para não tornar a conversa íntima demais. Ele falava, ela escutava e por sua vez rebatia algo que ele acabara de dizer; um detalhe da sua fala, algum argumento mal usado, um sentimento obscuro.

O fim da tarde, nas ruas internas de Copacabana, é marcado pelo barulho dos motores nos engarrafamentos da hora do rush. Talvez por isso, de vez em quando, um dos dois falava mais alto olhando diretamente para o rosto do outro. Depois ela baixava a cabeça e ele olhava para os lados sem saber o que procurava. Ficavam assim por um momento e depois retomavam a discussão.

Ela picava em pequenos pedaços o guardanapo de papel, ele mantinha as mãos nos bolsos. Havia tirado o paletó e a gravata e arregaçado as mangas da camisa para enfrentar o calor. Ela vestia uma saia simples, justa, com um paletó feminino, de acordo com a moda adotada pelas mulheres que exercem cargos executivos. Os dois copos de chope estavam quentes e sem espuma.

Em seguida ele pegou seu paletó e se levantou, deixou um dinheiro em cima da mesa junto com a conta que havia pedido ao garçon e foi embora pela Rua Paula Freitas na direção da praia. Ela ficou durante alguns momentos olhando os automóveis parados no engarrafamento. Então levantou-se, atravessou a rua e pegou um ônibus na direção do Jardim de Alah. O calor batia os 40 graus.


COPACABANA / Vinicius de Moraes

Esta é Copacabana — ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram a lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo! Esta é a areia
Que tanto enlameei com minhas lágrimas.
Aquele é o bar maldito. Não estás vendo
Aquele escuro ali? É um obelisco
De treva: cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.
(…)

Ô, COPACABANA / João Antonio
“[…] esta hora cinza, chumbo carregado, hora parada, neutra, a que os boêmios, os pederastas, os artistas da noite, as mulheres e seus cáftens, as curriolas da galeria chamam de rabo da manhã.

Sete da noite, quando Copacabana troca de mão, num golpe, na muda da turma de garçãos, barbeiros, balconistas, motoristas de táxi, botequineiros, e o resto dos serviçais, a luz elétrica acende o olho diferente, vesgo da noite na galeria.
A moçada sai da Zona Norte ou dos subúrbios lá longe, toma suas luzes como modelo de vanguarda no Rio. No bairro se sabe vestir bem, comer bem, beber o melhor. E os meninos, cabeça cheia, começam a descer dos ônibus xexelentos, vindos do outro lado da cidade, o bravo e esquecido, onde moram três quartos das gentes do Rio de Janeiro. Sem praia e sem recreio. A meninada principia na galeria Alaska, certa de que com o físico, juventude, gingas, bossa, conseguirá o melhor em mulheres, boates, facilitações e exuberância.”

A VIÚVA NA PRAIA / Rubem Braga

A morte do homem foi comentada no café; eu soube, assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.
(…)
E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente; além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto; já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente; não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos.(…)

LUAR SOBRE COPACABANA / Celso Japiassu

Névoa e gás envolvem a lua,
paredes e muros de Copacabana.
Reflexos imitam a lua, deságuam
nas línguas negras,
são estranhos animais.

Invisível-indivisível, o corpo
anda : corpos velhos sob a lua.
Os velhos passam, não são vistos.
São peixes transparentes contra a água
de outros corpos na rua.

Entre o mar e os edifícios
o areal rompe as ondas,
suja os olhos e a boca,
constrói no ar seu roteiro.
Deixa traços no caminho.

Uma noite sem mistério
ou sonho. Um homem senta-se ao bar,
aspira o hálito do tempo,
bebe ao futuro. As horas,
uma a uma, desperdiçam seus sinais.

O movimento dos vultos,
cães silenciosos, homens apagados
misturados ao trânsito da noite.
O tempo espelha sua lâmina
no refluxo das águas.

O sereno, as sombras e o silêncio
juntam-se nas esquinas das ruas
e avenidas do Leme ao Posto Seis.
Transitam além dos olhos, na alma
que não consegue adormecer.
Há um território do sono
explorado pelo mar e seus ruídos ,
habitação do medo , onde fantasmas
balbuciam sortilégios e os mortos
são aves recolhidas pelo vento .

Estudos, rascunhos, anotações (2)

17 d+00:00 Março d+00:00 2010


Esses desenhos foram realizados em aguada e grafite. Depois de digitalizados apliquei um alto contraste subtraindo os meio-tons para posterior impressão em serigrafia.

Estudos, rascunhos, anotações (1)

16 d+00:00 Março d+00:00 2010

BESTIÁRIO (13) SUÍTE ZAMENHOF

8 d+00:00 Março d+00:00 2010

Tenho recebido alguns comentários perguntando sobre a autoria dos desenhos da Suíte Zamenhof . Esclareço que os 14 trabalhos sob esse título publicados aqui no Bestiário são de minha autoria. O título da suíte é apenas uma homenagem ao naturalista polonês que no século XIX embrenhou-se na selva amazônica para registrar em textos e desenhos aspectos inéditos de nossa fauna (para vê-la clique AQUI). A suíte vinha sendo publicada em postagens intercaladas o que acabou suscitando dúvidas a respeito de sua autoria que só foi registrada no texto de introdução no BESTIÁRIO (1) .
Abaixo seguem os 8 trabalhos que completam a suíte. Para visualizar os outros 6 clique no tag ao final das imagens

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Os indestinados

14 d+00:00 Fevereiro d+00:00 2010


Este vídeo era pra ter entrado junto com a série dos andarilhos (clique AQUI para vê-la) mas sua postagem foi adiada devido a atrasos na finalização. Acompanha-o agora um texto pescado no blog do Celso Japiassu, arguto e sensível observador da caótica diversidade de Copacabana e das tribos que lá habitam.
Nessa dos Noctâmbulos, prima semovente dos meus Andarilhos, esvaiu-se o DNA libertário na cloaca das quitinetes onde lançaram âncora. Têm em comum com os Indestinados —que queimaram seus navios — a gratuidade da caminhada.

Eis o texto do Celso:

NOCTÂMBULOS
Eles vagueiam pela noite nas ruas quase vazias, sempre sozinhos, e todos parecem ter uma maneira de andar meio curvada. Passeiam vagarosamente e sem olhar para os lados. De comum entre eles, a palidez dos noctâmbulos em contraste com a pele bronzeada dos frequentadores da praia, os jovens e os de meia idade que costumam ser vistos durante o dia ou no fim da tarde ainda afogueados do calor do sol.

Estão sempre na vizinhança das farmácias que abrem à noite e avançam as madrugadas nos bares noturnos onde entram apenas para tomar café. É muito raro vê-los conversando com alguém e uma das ruas preferidas por eles parece ser a Hilário de Gouveia, onde a delegacia de polícia permanece aberta durante toda a noite.

Não se confundem com os que exercem atividades noturnas – garçons, prostitutas, taxistas e marginais diversos – pois o que fazem é apenas andar, vagar pela noite.

Não sei quantos são, mas tenho certeza de que não são poucos esses estranhos personagens de Copacabana, habitantes da noite que devem se sentir melhor movendo-se nas sombras.

ps.: no ‘blogroll’ aí ao lado está o link para o blog do Celso

Pequena suíte cheia de dedos / Fotomaquia (4)

25 d+00:00 Janeiro d+00:00 2010

SUÍTE EM VERMELHO

20 d+00:00 Janeiro d+00:00 2010

FOTOMAQUIAS 3 / CABEÇAS

13 d+00:00 Dezembro d+00:00 2009


CRÔNICA DE UM MAR INTERIOR

4 d+00:00 Dezembro d+00:00 2009

O Mediterrâneo do Artista

Mar Interior. Um programa desde o título. Mais que um programa. Um horizonte pessoal. Tema que o levaria a percorrer de modo compacto e simultâneo o que antes não era mais que forma deslocada e colateral – como num conto de Borges: nas margens do ainda não visto ou percebido. Hélio passou da margem para o centro, lançou estratos sobrepostos, mexendo no foco de escritemas e referenciais que antes pertenciam ao fora do quadro.
Creio ser este – na coleção dos trabalhos de Hélio Jesuíno – aquele em que liberdade e necessidade, acaso e destino rompem as divisórias e se revelam viscerais, úmidos de impressão, tirados de uma geografia própria, singular, cujas águas e correntezas nem por isso deixam de se abrir para outros mares.

Não seria esta uma atitude borgiana (eu diria quase pirandelliana), pois que Hélio nos reclama vedores e agentes necessários, diante de uma obra que guarda – na lógica do fragmento – o diálogo com o todo?

Uma coleção de obras que se comunica plenamente para dentro e para fora, das citações domésticas às demandas do outro. Um oceano de duas margens. Uma geografia que não sacrifica a liberdade e a beleza a pequenas e inomináveis razões de estado. Hélio Jesuíno trabalha em suas águas. Densas. Arquetípicas. Teatro de luz. Teatro de sombras. Espectadores agentes. De quem descobre no palco um mar de duas margens. Mar que guarda a memória da terra.

Hélio Jesuíno criou uma obra de coragem e de transformação. Um oceano de muitas margens.

Um mediterrâneo solar.

Marco Lucchesi